Entrevista - O percurso de um nacionalista

Da compreensão pequeno-burguesa de classe média paulistana à defesa de uma revolução social amparada em Vargas, Jango, Darcy Ribeiro e Leonel Brizola
por YAGO EUZÉBIO BUENO DE PAIVA JUNHO
fotos LUIZA SANSÃO




O sociólogo Gilberto Felisberto Vasconcellos nasceu em 1949 em Santa Adélia, interior de São Paulo. Filho de médico sanitarista, seu Zolachio Vasconcellos, e de professora primária, dona Adelaide Felisberto. Em 1968, entrou para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Da efervescência dos anos de chumbo passou incólume. Nunca se interessou pelo movimento estudantil. Mergulhou nos estudos sobre Escola de Frankfurt, psicanálise, literatura, Marx, Luckács e teoria da dependência. Considerado aluno prodígio, doutorou-se na mesma universidade em 1976 com a tese Ideologia curupira - uma análise do integralismo à luz da obra do professor Fernando Henrique Cardoso.

No melhor estilo oswaldiano, Vasconcellos traça um retrato ácido do panorama atual das Ciências Sociais no Brasil. O pensamento sociólogo dominante no país é antinacional, porque refratário à experiência trabalhista. Daí a culpa, na visão vasconcelliana, da sociologia no processo de desmonte do Estado com os dois mandatos do professor FHC. A Nação ocupa o primeiro plano da construção teórica de Gilberto Vasconcellos. A luta contra o imperialismo econômico. A revolta contra o colonialismo cultural. Nesta entrevista concedida à Revista de Sociologia Ciência & Vida, o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora fala de sua caminhada acadêmica e do pessimismo em relação às categorias sociológicas para o entendimento do país.

O que motivou o jovem de Santa Adélia a ingressar no curso de Ciências Sociais da USP no ano de 1968? Vasconcellos - Numa versão dessacralizadora do que fui, eu diria que fiz Ciências Sociais porque não era afeiçoado por matemática, assim como o Direito me soava insuportável, porque os juízes de direito que apareciam na minha cidade eram uns bolhas e chatos. É difícil apontar o motivo real que me levou a estudar Ciências Sociais. Fiz vestibular e passei na USP. Seria uma mistificação de minha parte dizer que na pós-adolescência estava imerso na missão de estudar o Brasil, para fazer alguma coisa em prol do povo brasileiro e da Nação. Entrei em 68 e a situação política era meio conturbada. Não havia aula, eu queria estudar e de repente ao meu redor o que existia era uma oposição contra a ditadura com estudantes jogando pedras nas ruas e passeatas todos os dias. Ser estudante tinha virado sinônimo de sacrifício e coisa perigosa. Isso me chocou. Na minha cabeça eu tinha uma idéia pequeno-burguesa de estudante, um lance pacato e de classe média. Na USP lembro-me de alguns professores admirados por mim, um deles era Gabriel Cohn, muito gentil, simpático, que acabou sendo orientador da minha tese, um intelectual muito bem equipado com os instrumentais em metodologia nas Ciências Sociais. Outro professor foi Rui Coelho, dando aula de Sociologia da Cultura, usando paletó elegante, falando de Proust, com a fisionomia de sono de tanto ler. O Rui Coelho era a memória ou a reminiscência, Gabriel Cohn era o rigor conceitual e ao mesmo tempo era chegado no que havia de delírio e no que havia de devaneio na cultura.

"Uma coisa intrigante é como um sociólogo, professor da universidade, no poder torna-se o rei das privatizações"
Você foi considerado um aluno prodígio na USP. Dessa época são os livros De olho na fresta e Ideologia curupira. Quais eram suas preocupações intelectuais? Vasconcellos - A ideologia curupira é a minha tese de doutorado. Eu me interessei em saber por que havia surgido uma ala de direita no seio do modernismo, um movimento que tinha um sentido de esquerda ou progressista. Então apareceu o tema do integralismo, que veio depois da minha predileção pelos escritores modernistas, sobretudo Oswald de Andrade. A ideologia curupira era uma tese que explicava pela teoria da dependência (no caso, dada por FHC e não por outros autores, porque FHC era uma referência quase obrigatória como autor a ser citado nas teses de Ciências Sociais), a ala direita do modernismo. Hoje penso que teria sido melhor explicar essa teoria à luz do integralismo. A Ideologia curupira é o desejo do Brasil de desconectar-se do mundo, mas nós nascemos da expansão do mundo capitalista europeu. O livro acabou sendo prefaciado pelo Florestan Fernandes. Ele aceitou fazer o prefácio e meteu o pau no livro, talvez o único prefácio contra um livro. De olho na fresta foi publicado no Rio de Janeiro através de um arranjo entre Carlos Guilherme Motta e Silviano Santiago, a quem eu pedi um prefácio. É um livro de ensaios não-acadêmicos sobre a música popular dos anos 1960, o fenômeno sonoro na percepção cultural do jovem brasileiro, com um artigo extemporâneo sobre Noel Rosa. Hoje isso me regozija muito: De olho na fresta era Noel Rosa e A ideologia curupira, Oswald de Andrade.

No início dos anos 1980 você regressa de Paris, após defender sua tese de pós-doutorado As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá, na École des Hautes Études de Paris, sob orientação do professor Alain Touraine. É a sua leitura da obra de Florestan Fernandes. Chegando ao Brasil vai dar aula na Universidade Federal da Paraíba, onde convive com Gilberto Freyre por dois anos e lança o Xará de Apipucos. Quer dizer, você estudou na seqüência o Castor e o Pólux da Sociologia brasileira. Por quê?
Vasconcellos -
 Estudei o que Florestan Fernandes escreveu sobre a especificidade da estratificação social no Brasil, que é um dos assuntos da Revolução burguesa no Brasil. Ou seja, temos uma burguesia cujo processo de acumulação não se realiza internamente, assim como a constituição do proletariado é constrangida pela existência da massa marginalizada e sem emprego. Aprendi muita coisa lendo Florestan, se bem que para mim o melhor dele é o estudo do folclore, porque o excesso de metodologia ofusca às vezes a realidade concreta. Depois estudei Gilberto Freyre, que é antípoda de Florestan, pois no xará de Apipucos o que sobressai é menos a metodologia do que a abordagem empática com olhos e ouvidos aguçados sobre a formação social brasileira. Eu confrontei no meu livro O xará de Apipucos o Florestan uspiano e o Gilberto Freyre ensaísta, visto até então por um prisma pejorativo. Ainda persiste o preconceito antiexpressional, e daí a valorização da monografia em detrimento do ensaio. O meu estudo sobre Gilberto Freyre estava centrado na seguinte perplexidade: como é que um autor tão arguto faz análise da realidade brasileira sem tocar na dominação externa, porque o imperialismo está ausente, ou seja, a subordinação da sociedade brasileira aos centros reitores da economia mundial não aparece na obra de Gilberto Freyre. Esse fato me intrigou muito e ainda me intriga, porque não temos as rédeas do nosso destino.


Após o livro Xará de Apipucos, você começa a fazer uma revisão de toda sua formação sociológica uspiana, que culminará no livro O príncipe da moeda. Qual o ponto principal de sua crítica? 
Vasconcellos - O meu livro O príncipe da moeda é uma análise dolorosa e simultaneamente catártica sobre o que foi o pensamento sociológico da USP e o estrago antinacional dos dois governos de FHC.
Uma coisa intrigante é como um sociólogo, professor da universidade, no poder torna-se o rei das privatizações. A Sociologia contribuiu para entregar o território ao capital estrangeiro ou a Sociologia não teria nada com o que foi FHC no governo. Eu lembro que uma vez na Paraíba encontrei Florestan Fernandes tomando água de coco na praia. Eu lhe perguntei: então a Sociologia chegou ao poder? Ele me respondeu: não, não foi a Sociologia. Mas foi o quê? Não há nenhuma relação entre a Sociologia do FHC com o governo FHC? Essas perguntas me levaram depois a escrever O príncipe da moeda, cuja ênfase recaiu na repressão ao conceito de imperialismo. O livro de FHC feito com Falleto, muito mal escrito,A teoria da dependência, foi lido na América Latina inteira como se fosse contra a subordinação ao imperialismo, quando na verdade era um livro resignado e conformista que pregava a impossibilidade do País deixar de ser dependente. FHC viu a dependência como um valor positivo, posto que ineliminável, ao contrário de Darcy Ribeiro, que queria passar o País a limpo rompendo com os laços de dependência. Darcy Ribeiro focou toda sua obra no imperialismo e, por isso, não foi presidente da República, enquanto FHC sacou o filão malandro da democracia e chegou ao poder. FHC reproduziu o mote do Pentágono no Cebrap com a antinomia autoritarismo versus democracia. Isso depois de a democracia do dólar ter derrubado João Goulart e instalado a ditadura do capital estrangeiro.
Você é declaradamente um Vargojangobrizolista. O que isso significa? 
Vasconcellos - Eu sou vargodarçajangobrizolista: Vargas, Darcy, Goulart e Brizola. Hoje eu acrescentaria Hugo Chávez. Essa é a política antiimperialista mais vigorosa na América Latina. Tiremos o chapéu para o Leonel Brizola, que na década de 1960 tinha uma abordagem da espoliação internacional mais profunda do que qualquer sociólogo. O pensamento de Leonel Brizola me conduziu ao estudo do getulismo. Em 1945, aos 23 anos, em Porto Alegre, Leonel Brizola percebeu a falsa contradição entre Moscou stalinista e Washington capitalista. Ele não entrou no Partido Comunista e percebeu que havia aspectos progressistas no Estado Novo. Como é que um sujeito revolucionário como Leonel Brizola entraria no PTB getuliano se não houvesse aspectos avançados no Estado Novo, não obstante a questão democrática? Eu me tornei brizolista por ter estudado os discursos de Leonel Brizola, e não por tê-lo conhecido pessoalmente, o que eu vim a fazer somente na década de 1990.
"Tiremos o chapéu para o Leonel Brizola, que na década de 60 tinha uma abordagem da espoliação internacional mais profunda do que qualquer sociólogo"
INTELECTUAL EM TRANSE
Com 27 anos de idade, editorialista do jornal Folha de S.Paulo, Gilberto Felisberto Vasconcellos faz as malas para a França, onde se pós-doutora na École des Hautes Études de Paris, com um estudo sobre a obra de Florestan Fernandes, sob orientação do professor Alain Touraine. De volta ao Brasil, conhece Gilberto Freyre e tem início o seu transe. Durante dez anos refaz seu percurso intelectual: da teoria da dependência ao nacionalismo trabalhista. Nessa trajetória, retoma Oswald de Andrade, demora a obra de Glauber Rocha, se encanta com o folclore de Luís da Câmara Cascudo, estuda os discursos de Leonel Brizola e a obra de Darcy Ribeiro e se torna amigo do físico J. W. Bautista Vidal. Esse é seu Paideuma.

Algumas vezes, você diz que é folclorólogo, e não sociólogo. Qual o panorama da Sociologia no Brasil atualmente? Como ela lida com as raízes culturais brasileiras?
Vasconcellos - Eu estou descrente da categorização sociológica para o entendimento do País. Acho de maior alcance gnosiológico a reflexão vinda do folclore sobre o cotidiano do povo brasileiro. Nisso é que eu me defino folclorólogo, um estudioso do folclore, ainda que não seja refratário a um discurso racional no entendimento da sociedade. O problema é que o aparato administrativo, burocrático e pedagógico das Ciências Sociais é antinacional. Por isso o nacionalismo na cultura brasileira foi tido como algo anti-sociológico, o contrário do que dizia Glauber Rocha, porque o Brasil sempre foi um País cobiçado pelas potências imperialistas, sobretudo agora com o fim do petróleo e a emergência da energia extraída dos vegetais. A loucura é o desencontro da geografia com a história. Quanto mais dramática a ocupação imperialista, maior a repressão contra o discurso nacionalista. Qualquer estudante de Ciências Sociais com 19 ou 20 anos entra na faculdade com ojeriza do nacionalismo, depois aprende que isso é coisa de gagá confinada à década de 1950.

O autor mais citado em todos os seus livros é o escritor Oswald de Andrade. Por que você foi buscar na literatura oswaldiana a sua fundamentação sociológica?
Vasconcellos - 
Oswald de Andrade foi o meu autor de cabeceira, hoje estou interessado no Oswald marxista, o que não quer dizer vê-lo apenas como membro do Partido Comunista, que, aliás, não tem sido marxista. O stalinismo vingava plenamente quando ele entrou no PC em 1928, tanto que nunca refletia sobre Trotsky, banido e assassinado pela burocracia stalinista. Oswald de Andrade talvez seja um dos maiores sociólogos brasileiros porque leu com extrema acuidade o livro de Engels, Origem da família, da propriedade privada e do Estado, livro esse que fecundou a antropologia de Darcy Ribeiro. É o mesmo da história hoje com o indo-socialismo, tal qual foi idealizado pelo peruano Mariátegui: a retomada da livre associação indígena, em que o produto não dominava o produtor, em que não havia dinheiro nem supremacia do sexo masculino com a monogamia exigida pela herança paterna, que acabou dando em casal isolado, casa própria, automóvel, TV e prestação. Oswald de Andrade colocou o seguinte desafio para a Sociologia desde a época de Roger Bastide: a necessidade de superar a tirania fálico-patriarcal mercantil da civilização. É lamentável que as Ciências Sociais nas últimas décadas tenham embarcado em um discurso anti-Eros. Oswald lembrou Engels: na família o homem é o burguês, a mulher representa o proletário. O proletariado brasileiro, sem as idéias de Oswald e Darcy, não romperá com o manto caridoso da catequese jesuítica que dá no Bolsa Família e no Brasil-tíquete.

Darcy Ribeiro dizia que o Brasil não deu certo, pois não fomos capazes de alcançar nossa aceleração evolutiva. O País ainda pode dar certo?
Vasconcellos - O conceito de aceleração evolutiva de Darcy Ribeiro é contra a participação do capital estrangeiro, que é um agente da modernização reflexa que não estende o progresso para a maioria da população. Nessa modernização vicária e iníqua das multinacionais o povo estará sempre marginalizado, ou seja, uma massa sobrante e estruturalmente inempregável. A única saída é uma revolução social amparada no legado vargojangodarçabrizolista.
EM TEMPO
Confira com exclusividade no site de Sociologia Ciência & Vida a bibliografia de Gilberto Felisberto Vasconcellos e outras perguntas desta mesma entrevista, em que ele aborda seu conceito de "capitalismo videofinanceiro", sua incursão no jornalismo, a Escola de Frankfurt, a amizade com Glauber Rocha e a questão do intelectual perante a sociedade.
YAGO EUZÉBIO BUENO DE PAIVA JUNHO é sociólogo, professor de Antropologia e Sociologia da Faculdade de Administração e Informática (FAI) e do Instituto Superior de Educação (ISE) e assessor de Planejamento e Desenvolvimento Municipal da Prefeitura de 
Santa Rita do Sapucaí - MG. Email:yjunho@uol.com.br


Fonte: http://www.revistasociologia.com.br

  

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